Vivemos um tempo em que a vida parece cada vez mais um reality show. Mas não um reality qualquer, com câmeras escondidas e desafios propostos por uma produção. Vivemos o reality da vida real, com celulares nas mãos, olhos atentos e dedos prontos para curtir, comentar, cancelar ou endeusar. E os protagonistas dessa nova dramaturgia são os influenciadores digitais.
A cada scroll na timeline, surgem histórias que se desenrolam em tempo real. Um término de namoro. Um unfollow. Um comentário interpretado como indireta. Uma roupa escolhida para um evento público. Tudo, absolutamente tudo, vira pauta. Não importa se o episódio envolve um adolescente, um casal em início de carreira ou uma figura já consolidada na internet: qualquer movimento é analisado, julgado e debatido como se fosse política internacional. E, talvez, o mais impressionante seja perceber que por trás de cada atitude pode haver — ou não — uma estratégia minuciosa de marketing.
A pergunta que fica é: o que é autêntico e o que é calculado nesse novo universo onde a imagem vale mais do que mil palavras?
A internet não perdoa o improviso. Mesmo as atitudes espontâneas são lidas sob a lente da suspeita. Uma briga de casal, por exemplo, se transforma em manchete. Se há envolvimento de pessoas conhecidas, os nomes ganham proporções épicas. E mais: dependendo de como o público interpreta os fatos, uma pessoa ganha milhões de seguidores em questão de dias, enquanto outra perde o namorado, o apoio da família e ainda sai como vilã. Em tempos de hiperexposição, a narrativa que se constrói nas redes muitas vezes fala mais alto do que a realidade dos fatos.
E há ainda um ingrediente perigoso nessa receita: a viralização. Porque viralizar não depende mais do mérito, da coerência ou do valor de uma mensagem. Viraliza quem emociona, quem causa, quem gera curiosidade ou indignação. Viraliza quem é visto como vítima ou vilão. E o algoritmo, como um juiz cego, apenas entrega mais do que o público quer consumir — mesmo que isso seja tragédia, exposição emocional ou conflito fútil.
Por trás das câmeras dos celulares, há vidas sendo afetadas de verdade. Termos como “gaslighting”, “exposição indevida”, “assédio virtual” e “violência psicológica” ganharam força porque muitos influenciadores — principalmente jovens — estão sendo tragados por uma máquina que exige visibilidade, mas cobra um preço altíssimo por ela.
E o mais curioso é que mesmo diante de todo esse caos, muitos desses acontecimentos parecem milimetricamente orquestrados. Um exemplo recente chamou atenção: uma figura pública foi prestar um depoimento em um ambiente mais formal e toda a sua aparência — da maquiagem ao tom de voz — parecia pensada. A mensagem passada por esse conjunto não verbal foi potente: vulnerabilidade, humanidade, naturalidade. E ainda assim, tudo soava, para muitos, como cuidadosamente planejado. Isso também é marketing. Marketing de imagem. Uma forma sutil — e hoje, sofisticada — de criar empatia, enfraquecer críticas, e atrair acolhimento.
Isso nos leva a um ponto crucial: será que estamos nos tornando cínicos a ponto de não conseguirmos mais acreditar em atitudes espontâneas? Ou será que estamos apenas nos tornando mais conscientes de que tudo, hoje, comunica?
O que antes era reservado a especialistas em assessoria de imagem, hoje está na mão de qualquer um com acesso à internet e um pouco de noção estética. E, cá entre nós, muitos desses jovens influenciadores têm equipes inteiras cuidando de cada detalhe: o que vestir, o que dizer, o que não dizer, como reagir. Porque cada postagem é um passo em direção à construção de uma marca pessoal. E, como toda marca, essa imagem precisa ser cuidada, fortalecida e vendida.
Mas até que ponto vale a pena vender a própria vida como um produto?
Talvez o maior dilema dessa geração seja justamente esse: a tênue linha entre o que é real e o que é performance. Porque a performance não acontece apenas no palco. Ela está no post chorando no story, no desabafo com filtro fofo, no textão de despedida, no print da conversa, na resposta atravessada que gera engajamento. E o público, ora sedento por verdade, ora faminto por entretenimento, consome tudo como se fosse um grande episódio de uma série.
O problema é que as consequências não são fictícias. Quando um influenciador é “cancelado”, há impactos emocionais, financeiros, sociais. Quando alguém viraliza de forma negativa, precisa lidar com uma pressão que muitas vezes ultrapassa qualquer capacidade de resiliência. E o mais irônico é que, muitas vezes, quem cancela hoje é o mesmo que aplaudia ontem.
Vivemos um tempo de amores líquidos, cancelamentos sólidos e exposições em alta definição.
E não adianta culpar apenas os influenciadores. O público também tem responsabilidade nesse jogo. Cada curtida, cada comentário, cada compartilhamento ajuda a definir quem será a próxima estrela e quem será a próxima vítima. Somos espectadores e roteiristas ao mesmo tempo.
Cabe, então, um convite à reflexão: que tipo de conteúdo estamos incentivando? Estamos valorizando a autenticidade ou premiando a encenação? Estamos ajudando a construir trajetórias ou contribuindo para quedas públicas?
É fácil rir de um barraco entre influenciadores. É divertido acompanhar fofocas em tempo real. Mas talvez seja hora de lembrarmos que, por trás de cada arroba, há um ser humano. E que mesmo a melhor estratégia de marketing não consegue blindar ninguém das dores reais da rejeição, da perda, da exposição excessiva.
É necessário que a sociedade aprenda a desacelerar o julgamento e desenvolver um olhar mais crítico sobre o consumo de conteúdo digital. Nem tudo é o que parece. E nem tudo que parece ser estratégia de marketing foi, de fato, calculado.
Há, sim, quem se beneficie da vitimização. Há, sim, quem manipule narrativas. Mas também há muitos que simplesmente estão tentando viver — crescer, amar, errar, aprender — sob o peso de uma lente de aumento cruel.
No fim das contas, a fama digital é como um espelho distorcido. Ela amplifica o que queremos mostrar, mas também reflete o que não conseguimos esconder. E talvez o maior desafio seja justamente esse: manter a sanidade em um mundo onde tudo precisa ser postado, justificado e defendido publicamente.
A vida não é um story. E os sentimentos não são filtros. Que possamos lembrar disso antes de consumir o próximo escândalo da internet como se fosse apenas mais um episódio de entretenimento.
Porque não é. Nunca foi.