Existem silêncios que falam mais do que palavras. E entre todos os silêncios do mundo, talvez o mais denso seja aquele que acontece entre duas pessoas que se amaram muito, mas deixaram conversas para depois. Um depois que nunca chegou. Um depois que, entre desencontros e receios, acabou virando nunca.
E é nesse tempo suspenso, nesse quase que não se realizou, que mora o sabor agridoce do café esquecido na xícara. Aquecido por intenções, mas abandonado pelo medo, pela pressa ou pelo orgulho.
Esse texto é sobre isso: sobre cafés que esfriaram na mesa. Sobre palavras engolidas. Sobre olhares desviados. Sobre saudade que não coube em nenhum retorno.
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Lembro de você sempre que o café começa a esfriar. Não importa onde eu esteja — na mesa da cozinha com a janela aberta, no balcão de uma cafeteria com gente passando lá fora, ou sozinha em algum canto tentando preencher a manhã com qualquer coisa que não seja você.
A xícara ainda solta vapor quando penso: “Se eu te ligasse agora, o que diria?” E, como sempre, não ligo. Porque já passou tempo demais. Porque talvez você já nem tome mais café. Talvez tenha mudado, talvez tenha esquecido. Talvez esteja exatamente como antes — esperando que eu diga alguma coisa.
Mas eu não digo. E o café esfria.
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A vida, às vezes, parece mesmo um café mal aproveitado. Você prepara com cuidado, espera o ponto certo, sente o aroma, planeja o momento perfeito para tomar. E então… alguém liga. Ou você se distrai. Ou pensa que mais tarde vai ser melhor. E quando volta, ele está lá: morno, amargo, sem o encanto inicial. E ainda assim, você bebe. Porque foi feito com carinho. Porque ainda é café. Porque não dá pra desperdiçar tudo.
Com a gente foi assim.
Tantas palavras que estavam quase prontas. Tantos “vamos conversar depois” que nunca encontraram o depois. Tantos sorrisos engolidos, mensagens apagadas, vontades não confessadas. Tantas perguntas que nunca foram feitas. E todas as respostas que agora jamais saberemos.
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Teve uma manhã em que eu quase disse tudo. O café estava forte, recém-passado, e eu tinha a intenção de te procurar. Só pra dizer que ainda lembrava do som da sua risada, da forma como você falava “tudo vai dar certo” com uma convicção que eu nunca soube de onde vinha.
Mas aí lembrei da última vez que tentamos conversar. Da distância em suas palavras. Do cansaço no seu “tô bem”. Da maneira como você já não me olhava mais de verdade. E recuei. Guardei a vontade. Tomei o café sozinha.
Foi nesse dia que entendi que tem coisa que não volta, por mais que a gente espere. Que tem café que a gente precisa beber sozinho. E que certas conversas moram apenas no coração da gente — onde ninguém mais escuta.
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É curioso como o tempo faz com que algumas coisas fiquem mais leves e outras mais pesadas. A ausência, por exemplo, tem peso variável. No começo, dói como pedra no peito. Depois, vira uma saudade mansa. Uma saudade que não grita, mas também não vai embora. Uma saudade que se acomoda feito visitante que esqueceu de partir.
E o café segue esfriando.
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Às vezes eu invento diálogos com você. Conversas que não tivemos, mas que eu gostaria de ter tido. Te conto sobre aquele livro que você disse que nunca teria paciência pra ler. Falo do filme que vi e pensei: “ele ia odiar o final”. Te conto dos meus dias. Das minhas manias novas. De como mudei de endereço, mas continuo me sentindo um pouco fora do lugar.
Você ri nas minhas lembranças. Fica bravo às vezes. Questiona minhas decisões. E eu te ouço, mesmo que não seja real. Porque tem dias que a gente só precisa disso: de uma voz amiga, ainda que inventada. De uma presença que não existe mais, mas que, de alguma forma, nunca saiu de nós.
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Não é sobre mágoa. Já passou essa fase. Hoje, o que sinto é mais parecido com gratidão e lamento. Gratidão por tudo que fomos, e lamento por tudo que não conseguimos ser.
Porque a verdade é que a vida atropela a gente. E a gente se deixa atropelar. Vai adiando o essencial. Vai deixando pra depois o que deveria ser dito agora. E o agora vira nunca. E o nunca se torna o peso de um café que esfriou esperando companhia.
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O café, quando esfria, muda de sabor. Fica mais amargo. Menos acolhedor. Quase estranho. E mesmo assim, ainda é o mesmo café. A base é a mesma. Só que o tempo transformou a experiência. Fez o que poderia ser quente e doce se tornar algo que a gente aceita por costume, mas já não aquece tanto por dentro.
Com a gente foi assim.
Ainda penso em você com carinho. Ainda espero que esteja bem. Mas já não crio planos de reencontro. Já não imagino finais diferentes. Só fico aqui, com a xícara na mão, olhando o tempo passar e sentindo o vapor desaparecer.
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Hoje eu preparei café e sentei na varanda. Sem celular. Sem pressa. Só eu e a lembrança de tudo que não foi. De tudo que poderia ter sido. E de todas as palavras que ainda ecoam dentro de mim.
Talvez escrever seja minha forma de ter essa conversa atrasada. De tirar da gaveta o que ficou entalado. De dar voz às saudades que não gritam, mas sussurram todo santo dia.
Se você estivesse aqui, talvez o silêncio fosse menos incômodo. Talvez a gente não dissesse nada, mas tudo estaria dito no jeito de estar junto. No jeito de segurar a xícara. No jeito de sorrir meio torto, como quem diz: “desculpa a demora”.
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Não tem um fim pra esse texto. Porque, assim como o café, certas histórias não acabam — só mudam de temperatura.
E mesmo frio, ainda carrega memória. Ainda aquece alguma coisa lá dentro. Ainda tem aroma de um tempo que, embora tenha passado, continua vivo em algum canto do peito.
Enquanto o café esfria, sigo tentando não esquecer de sentir. Sigo tentando lembrar que nem todo amor se explica. Que nem toda ausência se preenche. Que nem toda conversa precisa de palavras para acontecer.
E que, às vezes, o mais bonito da história está justamente no que nunca aconteceu — mas quase.
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Então, se você estiver lendo isso de algum lugar, saiba:
Te guardei aqui, nesse texto. Entre uma vírgula e outra. Entre um suspiro e outro. Entre o aroma do café quente que virou lembrança.
Te guardei não como algo que faltou, mas como algo que existiu do jeito que pôde. E que, apesar do silêncio, ainda vive nas palavras que nunca tivemos tempo de dizer.
Enquanto o café esfria, ainda converso com você. Mesmo que só aqui, dentro de mim.